6 de setembro de 2010

Menina afegã

Texto adaptado da Veja On-line
 
Em sua edição de junho de 1985, a revista americana National Geographic publicou aquela que se tornaria uma de suas capas mais famosas.
Ela trazia a foto de uma menina afegã de olhos verdes, dona de uma beleza tão extraordinária emoldurada por cabelos desgrenhados e um xale rasgado.
A imagem quase bíblica feita em um campo de refugiados no Paquistão, correu o mundo como síntese do sofrimento de um país antiqüíssimo, devastado por uma guerra que lhe estava matando a esperança – na época, contra o invasor soviético, instalado no Afeganistão desde 1979.
O encontro entre a menina e o fotógrafo Steve McCurry foi breve. Tirada a foto, ela sumiu em meio à multidão andrajosa, sem nem mesmo revelar seu nome.
Em 2001, com o Afeganistão novamente nas manchetes, McCurry voltou ao país com a missão de achá-la. Sua busca começou no mesmo campo de refugiados que visitara em 1984. Cerca de dois meses depois, ele finalmente se viu frente a frente com Sharbat Gula (esse é o nome dela), já uma mulher precocemente envelhecida.
Sharbat voltou a ser capa da National Geographic na edição que chegou às bancas em abril de 2002. Só que, desta vez, escondida sob uma burca e com a foto de 1984 nas mãos. A chamada da revista é: “Encontrada: dezessete anos depois, a história de uma refugiada afegã”.
Na época, Sharbat tinha no máximo 30 anos – ninguém sabe ao certo sua idade –, mas seu rosto está crivado de rugas e manchas. Somente o olhar lembra a menina de um passado não tão distante assim.
Ela perdeu a juventude em meio a conflitos que, nos 23 anos de guerra na época, mataram 1,5 milhão de pessoas no Afeganistão e fizeram quase 4 milhões de refugiados.
Sharbat ficou órfã de pai e mãe por volta dos 6 anos, durante um bombardeio soviético que riscou do mapa o vilarejo em que morava. Sem nada mais a perder, ela e quatro irmãos foram levados pela avó ao Paquistão. Para alcançar o país vizinho, caminharam uma semana inteira, afligidos por tempestades de neve.
Ao longo de quase dez anos, calcula-se, ela viveu num campo de refugiados.
De volta ao Afeganistão do Talibã, em meados da década de 90, ela se casou. Seu marido trabalha numa padaria da cidade paquistanesa de Peshawar, próxima à fronteira afegã. Pelo trabalho, o rapaz recebe o equivalente a 1 dólar por dia. Vítima de asma, Sharbat não suporta o misto de calor e poluição que impregna o ar de Peshawar. Por isso, ela vive a maior parte do tempo na região montanhosa de Tora Bora, que serviu de esconderijo para centenas de terroristas da Al Qaeda e foi duramente castigada por bombardeios americanos no ano passado.
Sharbat mora com suas três filhas. Uma quarta criança morreu ainda bebê. Apesar de a burca já não constar do figurino obrigatório, ela a usa com prazer quando vai à rua. “É uma roupa bonita para vestir, não é uma maldição”, diz.
Pertencente à etnia patane, majoritária no país e da qual saíram os talibãs, Sharbat sente-se ainda mais desconfortável sob a nova ordem. “Quando o Talibã dominava, a vida era melhor. Pelo menos havia paz e ordem.”
O encontro com McCurry foi tão rápido quanto o primeiro. “Expliquei que muitas pessoas se emocionaram com a foto e que, por causa dela, gente de todo o mundo decidiu fazer trabalho voluntário em campos de refugiados no Afeganistão”, diz o fotógrafo.
Ele ficou com a impressão de que a repercussão causada pela foto publicada em 1985 não a comoveu muito. Ao ver pela primeira vez sua imagem quando menina, Sharbat ficou envergonhada por causa dos rasgos no xale, causados por fagulhas da fogueira em que cozinhava.
Semi-analfabeta, seu grande sonho é que suas filhas possam estudar. “Eu queria terminar a escola, mas não foi possível. Fiquei triste quando tive de sair.”
Para ser fotografada, ela teve de pedir permissão ao marido.
Para comprovar que Sharbat Gula era de fato a menina afegã que estampou a ‘National Geographic’ de junho de 1985, a direção da revista submeteu as duas imagens a um legista do FBI, a polícia federal americana, e ao inglês John Daugman, o inventor do método de identificação pela íris.
Certeza sedimentada, Sharbat virou capa. Foi a segunda foto que ela tirou em toda a sua vida.

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