11 de maio de 2010

Capulanas africanas de Moçambique

(...) Ah! Tantos desconhecidos mortos
os que nasceram mais tarde
não hão-de-gritar humilhados
bayete-bayete-bayete
à kapulana vermelha e verde
se substituírem no tempo
kapulanas de várias cores. (...)
Corria o ano de 1954 quando Virgílio de Lemos escreveu este poema com o pseudónimo de Duarte Galvão. Foi acusado de desrespeito à bandeira portuguesa. O advogado Carlos Adrião Rodrigues conseguiu convencer as autoridades de que chamar a bandeira de capulana verde e vermelha era uma forma de consideração, porque só as mamanas, as senhoras de grande integridade, a vestiam.

Capulanas

 

De norte a sul de Moçambique não há mulher que não use a capulana. Usa-a para se vestir, para limpar e embrulhar as crianças, para as amarrar às costas, usa-a como toalha e como cortina. Ou na mudança de casa e em viagem, como embrulho da trouxa. A capulana não é para uso exclusivo das camponesas, como se possa pensar. As mulheres urbanas, que em geral se vestem à maneira ocidental, usam-na invariavelmente como traje de trazer por casa ou em certas cerimónias familiares. Outras mulheres, em África, usam o mesmo tipo de pano rectangular de algodão e, ultimamente, com mistura de fibras sintéticas, largos motivos estampados incluindo caras de "presidentes", e sobretudo com cores vibrantes. Mulheres e raparigas cobertas com estes panos coloridos, dão vida e cor às estradas de terra que cortam a paisagem monótona da savana ou às ruas e mercados das ruidosas e desordenadas cidades africanas. Noutros países estes panos podem ter outros nomes. No Quénia chamase "kanga". Na África Ocidental, no Congo ou no Senegal, chamam-lhe "pagne". Muitas línguas moçambicanas têm nomes vernáculos para estes rectângulos de tecido. Mas "capulana" é o nome mais usado, desde norte a sul, de leste a oeste em Moçambique. Hoje o nome faz parte do léxico da língua portuguesa mas não é uma palavra de idêntica origem. Uma das primeiras explicações que ouvimos, foi de que o nome derivava de Ka Polana, que significa o lugar do régulo Polana, hoje integrado na cidade de Maputo. Mas tudo indicando que o uso da capulana veio do norte para o sul, não parece plausível que o nome que ficou na língua tenha tido origem no sul. O autor do Dicionário Português-Changane, Bento Sitói, também não conhece a origem da palavra mas nota que ela não se usa em nenhum outro país africano de língua portuguesa onde é simplesmente "pano". Usa-se porém no Brasil, tendo como sinónimo canga, a palavra suaíli que referi atrás. E assim a origem da palavra capulana continua um enigma.

Assim escreve Noémia de Sousa no Poema para Rui de Noronha, no aniversário da morte.

(...) Mas se tu me vens, Poeta
desarmado e trágico,
eu te recebo fraternalmente
na capulana quente da minha consideração
e te embalo com a música da mais doce canção
ouvida da minha cocuana negra. (...)

Aa origens da Capulana

Na África oriental onde se fala suaíli, diz-se que este modo de vestir surgiu em meados do século XIX, quando as mulheres começaram a comprar lenços (em suaíli diz-se leso) de tecido de algodão estampado e colorido, trazido pelos mercadores portugueses do Oriente para Mombaça. Em vez de comprar um a um, mandavam cortar seis quadrados de uma vez, dividiam este pano ao meio e coziam o lado mais comprido fazendo uma "capulana" de 3x2 lenços. Depois era só envolver o corpo, amarrar com mais ou menos estilo e a moda impunha-se à medida que cada vez mais mulheres faziam o mesmo. Claro que os comerciantes não tardaram em encomendar aos fabricantes, na Índia ou noutros lugares da Ásia, não apenas "lenços" mas panos com a largura e o comprimento que as mulheres pretendiam. O estampado das "capulanas" era inspirado no sari indiano e no sarong indonésio, com os motivos maiores no centro e uma barra a toda a volta. Nos nossos dias os motivos são cada vez mais ao gosto africano, procurando os nossos diligentes comerciantes asiáticos ir ao encontro dos gostos e preferências das suas clientes. Há uma coisa que distingue a capulana que se usa em Moçambique das que vêm doutros países mais a norte: aqui não se usam as "legendas" impressas que caracterizam as capulanas do Malawi, Quénia ou Tanzânia e raramente se vêem retratos de dirigentes políticos ou religiosos.
A capulana é mulher. É vida. É sexo. É ciúmes. Como nos versos de Orlando Mendes no Adeus de Gutucumbi

(...) Eu te daria se não fosses a noiva de todos fazendo bandeira com uma capulana garrida às nove da noite naquela rua de areia suburbana (...)

Capulanas falam

Guardadas nos baús, as capulanas são o símbolo da riqueza que uma mulher possui. Foram-lhe oferecidas pelo homem que as cortejou, o marido que as amou, o filho quando regressou das minas do Transvaal, o genro que lhe quer a filha. A dona não as usa, guarda-as, entesoura-as. Só uma ocasião muito especial as fará sair à luz do dia. Mas podem ser oferecidas como presente, à filha, à futura nora, à neta no seu casamento. E quando a dona morrer elas passarão como herança para as descendentes suficientemente afortunadas para serem contempladas com elas. Mas a avó, em dia de boa disposição, pode chamar a neta para lhe mostrar as capulanas guardadas e falar-lhe do passado. A capulana, aqui, é documento histórico. Acontecimentos passados, contemporâneos da chegada de uma nova capulana às lojas dos "baniane" (comerciante asiático), dão o nome a essa capulana. Pode ser a prisão de Gungunhana o Imperador de Gaza. Ou a praga de gafanhotos que se abateu sobre o sul de Moçambique em 1934. Talvez evoque uma grande epidemia que vitimou a região, ou a visita dum dirigente político depois da Independência. Cada capulana "fala" desse acontecimento social ou histórico. A avó certamente não tem toda a história passada no seu baú, mas tem capulanas bastantes para relembrar à neta coisas antigas de que elas são os "documentos".

O processo de dar nome à capulana é parte da sua comercialização. Uma nova peça de capulana chega à loja e o comerciante apressa-se a apresentar o novo padrão às primeiras clientes. Elas estão em geral num pequeno grupo: mãe, filhas e noras, amigas ou vizinhas. E a troca de comentários em que o comerciante participa, acaba no batismo da capulana. Mais tarde, outras clientes aparecem a pedir a capulana que as vizinhas lhe mostraram e já a pedem pelo nome. Note-se que nem sempre a capulana se refere a um acontecimento histórico ou de âmbito social à escala nacional. Às vezes recorda apenas qualquer coisa passada numa pequena comunidade, numa aldeia ou num bairro citadino. Pode ser apenas uma intriga ou conflito entre mulheres rivais como uma capulana célebre que se chamou em ronga "Xivite Xa Leta", o ódio de Leta. O nome recorda uma briga entre duas mulheres porque uma roubou o marido à outra. Leta, óbviamente, foi a vítima com quem as outras se solidarizaram...


A Capulana no Luto e na Magia

Na cerimónia do enterro do marido, a viúva usa uma capulana sobre a cabeça e o rosto para "cobrir o choro". Há mesmo capulanas de motivos a branco e preto para serem usadas em sinal de luto. Mas, segundo o pintor Malangatana Valente, que conversou connosco sobre o uso da capulana no Sul de Moçambique, as mulheres da família, quando se preparam para a cerimónia do funeral do ente querido, vão à loja comprar capulanas novas e todas se vestem de igual. Há uma capulana especial, específica mesmo, que só os curandeiros ou adivinhos usam. Uma pessoa comum não se atreve a usá-la pois seria considerado uma falta de respeito, uma atitude impensável. A capulana das cerimónias mágicas tem apenas três cores ­ branco, vermelho e preto ­ e um padrão característico. O mais típico é um grande sol vermelho com cercadura de triângos pretos, como motivo central, repetido em tamanho pequeno na barra. Esta capulana, usada por uma mulher com um penteado especial de madeixas envolvidas numa argila especial e rara, que dão ao cabelo uma cor castanho-avermelhada, identificam imediatamente essa mulher como pessoa de estatuto e sabedoria especial: uma curandeira que também lê o passado e prevê o futuro. Diz Malangatana que estas três cores estão associadas à magia. A pequena cubata redonda do feiticeiro ou adivinho, quando ele está lá dentro recebendo os que o procuram, pode ser decorada com uma faixa de tecido de algodão branco, vermelho ou preto, envolvendo pelo lado de fora o perímetro da casa. As árvores sagradas, à sombra das quais se fazem cerimónias ligadas ao culto dos antepassados e dirigidas pelos mais velhos, são assinaladas com um laço desse tecido, geralmente vermelho. Há algumas décadas, percorrendo caminhos interiores entre povoações, ainda era habitual ver essas faixas atadas com um nó simples a um dos ramos mais baixos. As capulanas em apenas duas ou três cores, por exemplo azul escuro como cor de fundo, com motivos pequenos e delicados em branco, estiveram muito em voga nos anos 60 e estão a regressar. Quando estas capulanas são ligadas duas a duas, com um bordado aberto ou renda, no meio, chamam-se mucumi. É só usada pelas mulheres mais velhas, como por exemplo a mãe da noiva no dia do pedido de casamento. Ou usada como coberta nupcial da esteira, segundo algumas das nossas informadoras. Enfim, sem desmerecer a graça e o estilo com que as moçambicanas do sul de Moçambique sabem amarrar a capulana à cintura, é preciso ir ao norte, a Nampula, Nacala, Pemba ou Ilha de Moçambique para ver a arte e a fantasia do traje com base na capulana. As mulheres, aqui, usam várias capulanas sobrepostas e lenços ou outras capulanas na cabeça, artisticamente armados em toucado, com cores e padrões perfeitamente combinados. Nas cidades costeiras e na Ilha, brincos e colares de filigrana de prata, arte dos joalheiros locais, são complemento que empresta luxo e opulência às capulanas de algodão, estampadas ou tecidas, que as mulheres só tiram da arca em dia de festa.

Texto extraído do livro Capulanas & Lenços, publicado pela Missanga

BOLSA TOM DE ARTE FEITA COM CAPULANA AFRICANA DE MOÇAMBIQUE


www.tomdearte.elo7.com.br





2 amigos comentaram...:

Unknown disse...

Olá!
Preciso de sugestão de um nome, em Salvador, para falar sobre as capulanas de Moçambique.Vocês têm alguma sugestão. Obrigado e parabéns pelo blog.
Douglas (douglas.lapa@gmail.com)

"A VIDA COMO NÃO A TEMOS" disse...

Publicamos pela Editora UniRitter, em Porto Alegre, RS, o livro intitulado "Redes & Capulanas: identidade, cultura e história nas literaturas lusófonas", traz na capa uma de nossas alunas, usando uma capulana. Ver no site da Instituição, Editora: www.uniritter.edu.br